Capitalismo Global, Transativismo e a Colonização das Mulheres

Sabrina Falcão
9 min readJun 21, 2023

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Tradução livre do artigo de Seiya Morita. Texto original em inglês.

Imagem retirada do texto original

‘[Ele] coloniza um corpo feminino, rouba-lhe os seus recursos naturais, controla-o, usa-o, esgota-o como quer, nega-lhe liberdade e autodeterminação para que possa continuar a saqueá-lo, move-se à vontade para conquistar outras terras que pareçam mais verdejantes e sedutoras. As feministas radicais chamam esse comportamento exclusivamente masculino de “imperialismo fálico” e veem nele as origens de todas as outras formas de imperialismo.’

— Andrea Dworkin, Our Blood

A essência do imperialismo é, acima de tudo, dominar, possuir, dispor, apropriar-se e expropriar completamente as pessoas consideradas inferiores. Um dos povos subjugados dentro das sociedades capitalistas é a classe das mulheres. Homens dominantes, incluindo esquerdistas e liberais, conspiraram com o capitalismo para realizar várias formas de colonização das mulheres. As mais importantes dessas indústrias são a pornografia, a prostituição e a [agências] de gravidez sub-rogada. Essas são grandes indústrias fazedoras de dinheiro e estão entre as mais lucrativas da economia global moderna. Um de seus lemas é ‘trabalho sexual é trabalho’, que nada mais é do que uma declaração sucinta de que a colonização dos corpos das mulheres é uma agenda e um empreendimento capitalista legítimo. Os homens à esquerda, supostamente contrários ao capitalismo, tornam-se porta-vozes e ideólogos da indústria do sexo, a mais odiosa e corrupta de todas as indústrias capitalistas, e promovem a colonização das mulheres em todo o mundo.

Mas, nos últimos 20 anos, surgiu outro modo de colonização das mulheres. Ele é o transativismo ou o movimento do ideário trans. No Ocidente, assim como no Japão e na Coreia do Sul, aqueles que entoam o mantra “trabalho sexual é trabalho” são os mesmos que entoam o mantra “mulheres trans são mulheres”. Eles constituem praticamente o mesmo movimento político, a mesma corrente ideológica e o mesmo grupo de interesse.

Por que esses dois se fundiram em todos os lugares do mundo? Por que isso acontece tanto no Ocidente quanto no Oriente, onde as culturas e histórias são totalmente diferentes? É apenas uma coincidência?

Não, isso não é um acidente. A razão pela qual eles se fundem é que eles têm as mesmas raízes, a mesma dinâmica e a mesma essência: ambos são movimentos imperialistas pelos direitos dos homens que buscam dominar e colonizar as mulheres, os corpos das mulheres e a sexualidade das mulheres.

A pornografia conquista e coloniza fisicamente os corpos sexados das mulheres no processo de sua produção, e os conquista e coloniza virtualmente no processo de seu consumo. Na prostituição, os cafetões e os homens compradores conquistam e colonizam mais diretamente o corpo feminino. Mas isso ainda é insuficiente para a dominação e colonização das mulheres, porque as mulheres ainda mantêm seu “status” de Outro, mesmo que apenas como objetos. O desejo dos homens de dominar as mulheres não tem limites, e alguns deles não toleram sequer a existência da mulher como o Outro. É aqui que entra o transgenerismo. É a colonização mais completa das mulheres. É assim de várias maneiras, conforme abaixo.

1- Em primeiro lugar, o transgenerismo domina e coloniza a própria categoria das mulheres, alterando a definição de mulher para que os homens possam entrar ou ter acesso a ela livremente. Para um grupo oprimido, definir-se por si próprio é a garantia mínima de sua autonomia. O transgenerismo priva as mulheres precisamente disso. Assim como os imperialistas ocidentais colonizam as pessoas que procuram dominar, definindo quem são e determinando a fronteira entre elas e o resto do mundo, o movimento do ideário trans, também nascido no Ocidente, torna as mulheres algo conceitual e imaginário ao dizer que um homem pode se tornar uma mulher porque sua mente e/ou comportamento é feminino e/ou ele se identifica como mulher. Ser mulher deixa de ser um fato objetivo, material e político, e passa a ser uma ideia ou sentimento que os homens são livres para possuir. As mulheres são privadas de sua soberania final. A autodeterminação do grupo oprimido torna-se impedida porque é determinado que o grupo não existe (o que faz à pergunta “o que é uma mulher?” ficar sem qualquer resposta coerente de muitos políticos aliados ao ideário transgênero).

Andrea Dworkin certa vez identificou o “poder de nomear” como um dos poderes dos homens. Em sua obra mais importante, Pornografia, ela afirma:

“Os homens têm o poder de nomear, um poder grande e sublime. Esse poder de nomeação permite aos homens definir a experiência, articular limites e valores, designar a cada coisa seu domínio e qualidades, determinar o que pode e o que não pode ser expresso, controlar a própria percepção.” (Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women, A Plume Book, 1991, p. 17.)

A maior manifestação desse poder hoje é o transgenerismo ou o movimento do ideário trans. Agora, até os homens são chamados de “mulheres”, e até a própria definição de mulher é determinada pelos homens.

Dworkin continua dizendo que as mulheres que se opõem ao ‘poder de nomeação’ dos homens são perseguidas ― “Qualquer coisa que contradiga ou subverta a nomenclatura masculina é difamada até desaparecer” (ibid., p. 18) ― e é isso que está acontecendo hoje com o caso do transgenerismo. As mulheres que se opõem a esse poder masculino de nomeação são chamadas de ‘TERFs’, ‘transfóbicas’ e ‘odiadoras de trans’ e estão sujeitas a desprezo, calúnia e ataques violentos. Em campos de trabalho de intensa competição, como academia, mídia e terceiro setor, qualquer uma que se manifeste contra o transgenerismo tem seu emprego e sustento ameaçados.

2- O transgenerismo reduz a ‘feminilidade’ a práticas de vestir, ter cabelos longos, aplicar maquiagem e se comportar de maneiras que são amplamente consideradas ‘femininas’. Então, alguns homens se apoderam da ‘feminilidade’ reduzida a tais adornos externos. Às vezes, eles até dizem descaradamente que suas paródias de feminilidade são mais realistas do que as mulheres reais que imitam. Isso é semelhante aos colonialistas que aceitam e promovem caricaturas exageradas de povos indígenas como mais autênticas do que as reais.

3- O ideário trans incentiva a chamada “cirurgia de redesignação de gênero” para alguns homens criarem falsas partes sexuais de mulheres em seus próprios corpos para possuir e colonizar mais diretamente a feminilidade. Eles sempre podem admirar no espelho os seios e outras partes falsas de mulheres em seus próprios corpos, e podem tocá-las sempre que quiserem. Essas partes do corpo são imagens pornificadas reproduzidas em seus corpos. É pornografia incorporada.

4- O ideário trans faz com que as meninas acreditem que são homens se se comportarem de maneira “não feminina” e nega sua feminilidade ao dar-lhes bloqueadores da puberdade, hormônios cruzados e remoção de seios. Esta é outra forma de colonização das mulheres. Os britânicos conquistaram a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia e tentaram embranquecer as crianças indígenas ou mestiças, separando-as de suas comunidades, dando-lhes nomes brancos, incutindo-lhes uma mentalidade branca e ensinando-as a odiar suas comunidades. No entanto, esses colonialistas clássicos não chegaram a embranquecer os corpos dos povos indígenas. O que eles fizeram, na melhor das hipóteses, foi controlar suas mentes. Mas o movimento de identidade trans faz mais do que isso. Não só remodela as mentes das meninas colonizadas, mas também seus corpos.

A “transição” de crianças faz com que os capitalistas da indústria médico farmacêutica global lucrem por meio de medicamentos, cirurgias e re-cirurgias pelo resto de suas vidas. A base econômica do imperialismo do século 21 é o capitalismo global, e o mesmo vale para o ideário trans. O capitalismo como um sistema econômico em constante expansão requer novas áreas de expansão para se sustentar e alimentar. Juntamente com o desenvolvimento da indústria global do sexo, o desenvolvimento global do transativismo cria uma fonte de lucro constante e em constante expansão para o capital global.

5- O transativismo coloniza fisicamente os espaços das mulheres, assumindo que os espaços só para mulheres são transfóbicos (sic) e permitindo que os homens (que se identificam como mulheres) entrem livremente neles. Seja em banheiros públicos, provadores, vestiários, prisões ou abrigos, não há mais espaços somente para mulheres em países onde o transativismo tomou conta. Estes são agora espaços aos quais os homens têm livre acesso. A característica mais importante do colonialismo clássico foi ocupar o território habitado pelos povos indígenas, abolir seus espaços exclusivos e controlá-los. As mulheres agora enfrentam esse mesmo processo.

6- O transativismo permite que os homens que se autoidentificam como mulheres ocupem posições políticas como ‘mulheres legisladoras’, privam as mulheres de homenagens como casos de ‘sucessos femininos’ e invadam esportes femininos, competições femininas e todos os outros eventos femininos para dominar e colonizá-los. Um resultado particularmente desastroso foi produzido em relação aos esportes femininos. Homens com vantagens físicas, que só conseguem resultados medíocres nas competições masculinas, entram nos esportes femininos alegando que são mulheres e roubam medalhas, prêmios e reconhecimento das mulheres.

7- O transativismo sequestra e coloniza até mesmo o lesbianismo. Homens que são meros heterossexuais afirmam serem “lésbicas” porque amam romanticamente e desejam sexualmente apenas mulheres, tirando o lesbianismo conceitualmente das mulheres e tentando dominar fisicamente (e às vezes estuprar) mulheres lésbicas. As lésbicas são as mulheres que mais rejeitaram os homens e que mais tentaram escapar do imperialismo fálico e, portanto, para os homens imperialistas, é exatamente por isso que devem ser colonizadas.

Andrea Dworkin afirma que as lésbicas são colonizadas pela pornografia ao serem tratadas como objetos sexuais para o prazer sexual dos homens:

“O masculino define e controla a ideia da lésbica na composição da fotografia. Ao vê-la, ele a possui. A lésbica é colonizada, reduzida a uma variante da mulher-como-objeto sexual, usada para demonstrar e provar que o poder masculino permeia e invade até mesmo o santuário privado das mulheres umas com as outras.” (ibid., p. 47.) Essa colonização é feita apenas através da imagem, mas o transgenerismo tenta colonizar lésbicas de carne e osso no mundo real.

8- O ideário trans estabelece arbitrariamente uma distinção “cis-trans” entre “mulheres” e nomeia as mulheres comuns como ‘mulheres cis’. Dar às mulheres o nome degradante de “cis” é o mesmo ato colonialista de quando colonos ocidentais ou imperialistas chamavam a população local de “selvagens”, “índios”, “chinas” ou “japas”. Os imperialistas japoneses do pré-guerra que colonizaram a península coreana forçavam os habitantes locais a adotar nomes japoneses.

9- Ainda mais detalhadamente, as mulheres rotuladas como “cis” são descritas como mais privilegiadas do que as “mulheres trans”. Embora as mulheres sejam a maior e mais antiga minoria na história da humanidade e tenham sido consistentemente oprimidas, discriminadas, exploradas, estupradas, objetificadas e mortas desde o início do domínio masculino (patriarcado), o grupo agora é privado até mesmo desse status de minoria. E um homem que durante toda a vida gozou do privilégio masculino, mas um dia declara que se sente mulher, é considerado mais oprimido do que qualquer “mulher cis”. Assim, as mulheres são privadas do direito de se manifestar sobre a injustiça de seu status imposto. Isso é desumanização em sua forma mais completa. As mulheres são privadas de qualquer reconhecimento de sua subjetividade como mulheres.

10- Finalmente, o transativismo sequestra e coloniza o próprio feminismo. A “interseccionalidade”, que a esquerda tanto gosta de defender, é hoje um pretexto para tirar o feminismo das mulheres e usá-lo como ferramenta para dominá-las. No início, a “teoria da interseccionalidade” deveria enfatizar a presença de mulheres entre minorias raciais e étnicas que sempre foram subsumidas e representadas pelos homens de seu grupo racial, mas agora se tornou um meio de desmantelar o status de classe das mulheres e se apropriar do feminismo. Ao longo da história mundial, uma ideologia projetada para libertar alguns grupos muitas vezes se tornou uma ferramenta para subjugá-los.

Assim, o transativismo ou o movimento do ideário trans é uma ideologia imperialista masculina, um movimento que busca privar as mulheres de tudo o que elas têm e colonizar as mulheres em todos os aspectos. E os Estados Unidos, o maior estado imperialista do mundo, está tentando espalhar essa ideologia por todo o mundo por meio de pressão, incentivos financeiros e ameaças de suas agências governamentais e embaixadas. A Organização das Nações Unidas, organização internacional majoritariamente imperialista ocidental, também dissemina o ideário trans pelo mundo e a impõe a todos os países. Esta é uma abordagem imperialista clássica.

A jurista feminista Catharine MacKinnon afirmou certa vez:

“Qualquer coisa que as mulheres reivindicaram como sua — maternidade, esportes, trabalhos tradicionalmente masculinos, lesbianismo, feminismo — torna-se especificamente sexy, perigosa, provocadora, castigável, tornada dos homens, na pornografia. (Catharine MacKinnon, Toward a Feminist Theory of the State, Harvard University Press, 1991, pp. 138–139.)

Esta afirmação é certamente correta. E seria ainda mais correta se a última palavra, “pornografia”, fosse substituída por “transgenerismo”. O transgenerismo, ainda mais do que a pornografia (e a prostituição), é o último meio de apropriação e colonização das mulheres (o que é realmente trágico é que ela [MacKinnon] não entende nada disso; pelo contrário, ela capitulou completamente e agora está atacando outras feministas radicais). Os homens finalmente descobriram. Eles nunca vão abrir mão disso. Portanto, devemos destruí-lo por dentro e por fora.

Seiya Morita é um escritor japonês marxista e crítico de gênero. O artigo com a resposta de Seiya ao recente [Maio, 2023] artigo de Catharine MacKinnon sobre transgenerismo será publicado aqui [em inglês] no próximo mês.

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