Carta de Emma Thompson
Resposta a contratação de John Lasseter pela Skydance
Na sequência de acusações de má conduta sexual que abalaram a indústria cinematográfica em 2017, John Lasseter, diretor dos dois primeiros Toy Story, Vida de Inseto e Carros, entre várias outras animações de sucesso, tirou uma licença de seis meses depois de confessar “que pisou na bola” com suas colegas do sexo feminino. Sem especificar exatamente o que foi essa pisada, o co-fundador da Pixar e chefe de animação da Disney pediu desculpas por qualquer “abraço” ou “outro gesto” que tenha sido percebido como “indesejável”. Em junho de 2018 sua licença se tornou saída definitiva.
Da Disney.
Porque em janeiro desse ano, a produtora Skydance anunciou a contratação de Lasseter. A empresa é uma gigante afiliada à Paramount Pictures, e lançou uma série de filmes de sucesso como World War Z e Star Trek Beyond. Diante da reação negativa, David Ellison, dono da companhia, defendeu a decisão num memorando dizendo “Estamos certos de que John aprendeu lições valiosas e está pronto para provar suas capacidades como líder e colega”.
Mas Emma Thompson não está tão certa disso. Em uma carta recheada de perguntas capciosas na qual pede demissão do filme Luck, uma animação produzida pela Skydance Animation, a atriz questionou o seu dono sobre a contratação de John Lasseter, indagando sobre as implicações éticas de trabalhar com o executivo abusador.
Abaixo, a carta de Emma Thompson:
“Como você sabe, saí da produção de Luck — a ser dirigido pelo maravilhoso Alessandro Carloni. É muito estranho para mim que você e sua empresa considerem contratar alguém com o padrão de má conduta do Sr. Lasseter já que, dado o clima atual, é razoável esperar que pessoas com o tipo de poder que você tem façam sua lição de casa.
Eu percebo que a situação — envolvendo muitos seres humanos — é complicada. No entanto, estas são as perguntas que gostaria de fazer:
- Se um homem toca mulheres de forma inadequada há décadas, por que uma mulher gostaria de trabalhar para ele, se a única razão pela qual ele não as toca de forma inapropriada agora é porque seu contrato diz que ele deve se comportar “profissionalmente”?
- Se um homem fez com que as mulheres em suas empresas se sentissem desvalorizadas e desrespeitadas por décadas, por que as mulheres em sua nova empresa achariam que qualquer respeito que ele mostrasse fosse outra coisa senão algo que ele é obrigado a fazer por seu assessor, seu terapeuta e seu contrato de trabalho? A mensagem parece ser: “Estou aprendendo a sentir respeito pelas mulheres, então, por favor, seja paciente enquanto eu trabalho nisso. Não é fácil.”
- Muito se falou sobre dar a John Lasseter uma “segunda chance”. Mas provavelmente ele está recebendo milhões de dólares para receber essa segunda chance. Quanto dinheiro as funcionárias da Skydance vão receber para DAR essa segunda chance?
- Se John Lasseter criasse a sua própria empresa, todos os empregados teriam a oportunidade de escolher entre dar ou não uma segunda chance. Mas qualquer funcionário da Skydance que não queira dar a ele uma segunda chance precisa ficar desconfortável ou perder o emprego. Não deveria ser John Lasseter quem teria que perder o emprego se os funcionários não quiserem dar a ele uma segunda chance?
- Skydance revelou que nenhuma mulher recebeu compensação da Pixar ou da Disney como resultado de ter sido assediada por John Lasseter. Mas, diante de todos os abusos cometidos contra mulheres que se apresentaram para fazer acusações contra homens poderosos, realmente achamos que nenhuma compensação significa que não houve assédio ou ambiente de trabalho hostil? Será que deveríamos nos sentir tranquilas porque as mulheres que sentiram que suas carreiras foram prejudicadas ao trabalhar para Lasseter não receberam dinheiro?
Espero que essas perguntas tornem o nível do meu desconforto compreensível. Lamento ter que me afastar porque tenho muita afeição por Alessandro e acho que ele é um diretor incrivelmente criativo. Mas eu só posso fazer o que me parece certo durante estes tempos difíceis de transição e conscientização coletiva.
Estou bem ciente de que séculos de senso de direito ao corpo das mulheres, quer elas gostem ou não, não vai mudar da noite para o dia. Ou em um ano. Mas também estou ciente de que, se as pessoas que se posicionaram — como eu — não adotarem esse tipo de postura, é muito improvável que as coisas mudem no ritmo necessário para proteger a geração da minha filha.
Sinceramente,
Emma Thompson”