Marx e Gandhi eram liberais — Feminismo e a esquerda “radical”

Sabrina Falcão
19 min readJun 6, 2023

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Por Andrea Dworkin — Original aqui

Print da imagem da capa do artigo original tirado do site archive.org

Dedicado à memória de Virginia Woolf

1. O problema

Elas [feministas] estavam lutando contra o mesmo inimigo que você está lutando e pelas mesmas razões. Elas estavam lutando contra a tirania do estado patriarcal como você estava lutando contra a tirania do estado fascista. E no exterior o monstro veio mais abertamente à superfície. Não há como confundi-lo lá. Ele ampliou seu escopo. Ele está interferindo agora com sua liberdade; ele está ditando como você deve viver; ele está fazendo distinções não apenas entre os sexos, mas entre as raças. Você está sentindo em sua própria pessoa o que suas mães sentiram quando foram excluídas, quando foram caladas, porque eram mulheres. Agora vocês estão sendo excluídos, estão sendo calados, porque são judeus, porque são democratas, por causa da raça, por causa da religião. Toda a iniquidade da ditadura, seja em Oxford ou Cambridge, em Whitehall ou Downing Street, contra os judeus ou contra as mulheres, na Inglaterra ou na Alemanha, na Itália ou na Espanha, agora é evidente para você.

Virginia Woolf, Três Guinéus

“Os lares são os lugares reais das mulheres que agora obrigam os homens a ficarem ociosos. É hora de o governo insistir em que os empregadores dêem trabalho a mais homens, permitindo-lhes assim casar com as mulheres que agora não podem se aproximar”. Coloque ao lado outra citação. “Existem dois mundos na vida da nação, o mundo dos homens e o mundo das mulheres. A natureza fez bem em confiar ao homem o cuidado de sua família e da nação. O mundo da mulher é sua família, seu marido, seus filhos e seu lar.” Um está escrito em inglês, o outro em alemão. Mas onde está a diferença? Os dois não estão dizendo a mesma coisa? Não são ambas as vozes de ditadores, quer falem inglês ou alemão, e não concordamos todos que o ditador, quando o encontramos no exterior, é um animal muito perigoso e muito feio? E ele está aqui entre nós, erguendo sua cabeça feia, cuspindo seu veneno no coração da Inglaterra. Não é desse ovo, para citar o Sr. Wells novamente, que “a obliteração prática de [nossa] liberdade por fascistas ou nazistas” surgirá? E não é a mulher que tem de respirar esse veneno e lutar contra esse inseto, secretamente e sem armas lutando contra o fascista ou nazista tão seguramente quanto aqueles que o lutam com armas? E essa luta não deveria desgastar sua força e exaurir seu espírito? Não deveríamos ajudá-la a esmagá-lo em nosso próprio país antes de pedirmos a ela que nos ajude a esmagá-lo no exterior? E que direito temos nós, senhor, de alardear nossos ideais de liberdade e justiça para outros países quando podemos sacudir de nossos jornais mais respeitáveis a qualquer dia da semana ovos como estes?

Virginia Woolf, Três Guinéus

É a figura de um homem, alguns dizem, outros negam, que ele é o próprio Homem, a quintessência da virilidade, o tipo perfeito de que todos os outros são alusões imperfeitas. Ele é um homem certamente. Seus olhos estão vidrados; seus olhos brilham. Seu corpo, que está apoiado em uma posição antinatural, está bem protegido por um uniforme. No peito desse uniforme estão costuradas várias medalhas e outros símbolos místicos. Sua mão está sobre uma espada. Ele é chamado em alemão e italiano de Fuhrer ou Duce; em nossa própria língua Tirano ou Ditador. E atrás dele jazem casas em ruínas e cadáveres — homens, mulheres e crianças… Isso sugere uma conexão e para nós uma conexão muito importante. Sugere que os mundos público e privado estão inseparavelmente conectados; que as tiranias e servilidades de um são as tiranias e servilidades do outro. Sugere que não podemos nos dissociar dessa figura, mas somos nós mesmos essa figura. Sugere que não somos espectadores passivos, condenados à obediência sem resistência, mas que, por meio de nossos pensamentos e ações, podemos mudar essa figura.

Virginia Woolf, Três Guinéus

Três Guinés foi publicado em junho de 1938. É o produto de uma mente muito singular e, creio eu, de um estado de espírito muito singular. A intenção era ser uma continuação de Um Quarto Só Seu, mas foi escrito de uma maneira muito menos persuasiva e menos brincalhora. Foi um protesto contra a opressão, um protesto genuíno denunciando males reais e, às convertidas, Virgínia não pregou em vão. Muitas mulheres escreveram para expressar sua aprovação entusiástica; mas seus amigos íntimos estavam em silêncio e, se não em silêncio, críticos. Vita não gostou, e Maynard Keynes ficou zangado e desdenhoso. Era, declarou ele, um argumento tolo e não muito bem escrito. O que realmente parecia errado com o livro
- e estou falando aqui de minhas próprias reações na época — foi a tentativa de envolver uma discussão sobre os direitos das mulheres com a questão muito mais agonizante e imediata do que deveríamos fazer para enfrentar a ameaça cada vez maior do fascismo e guerra. A conexão entre as duas questões parecia tênue e as sugestões positivas totalmente inadequadas.

Quentin Bell, Virginia Woolf: Uma Biografia

Citei longamente o Três Guinéus de Virginia Woolf porque é improvável que aqueles de esquerda que consideram as causas da guerra e agem para acabar com ela conheçam o livro. Ele foi difamado como uma bobagem tola pelos esquerdistas em 1938 e hoje é, para sermos educados, ignorado pela maioria das pessoas na política.

Em 1938, Virginia Woolf era uma proeminente (embora infinitamente condescendente com) artista de primeira grandeza. Embora suas preocupações formais a aliassem a James Joyce, como mulher ela foi colocada sem esforço no final de uma lista muito curta: as irmãs Bronte, Austen, as duas Georges, Woolf. Embora suas preocupações políticas lhe concedessem o reconhecimento como uma mente original, uma pensadora revolucionária séria, tanto a qualidade quanto o conteúdo de sua análise foram ignorados. Em 1938, Woolf estava a 3 anos de seu último ato consciente, o suicídio, o último recurso de muitos profetas sem nenhuma comunidade real.

Três Guinéus é a primeira análise feminista do que é a guerra e como pará-la. Woolf é implacável em sua insistência de que a guerra é uma atividade masculina não apenas porque os homens fazem a guerra, mas porque a guerra é uma extensão direta dos valores e comportamentos masculinos. Ela descreve o que é machismo [1] (embora ela não tenha usado a palavra) e como sua manifestação pública na guerra é um reflexo sombrio e preciso de sua presença no que ela chama de “casa particular”, a casa onde os homens governam e as mulheres servem. Ela mostra como o modelo heterossexual homem-mulher é o modelo básico para padrões de dominação e submissão que caracterizamos na esfera pública como tirania. Ela demonstra que o Fuhrer e II Duce são maridos, violando sem consciência nações de mulheres. Ela insiste que os nazistas e os ingleses que os desprezam são uma irmandade com um apetite comum por jogos ilegítimos de guerra de poder, uniformes, riqueza, conquista: em uma palavra, domínio. Ela diz que para parar a guerra os homens devem mudar o comportamento dos homens. Em sua análise, a humanidade deve destruir o próprio patriarcado. Não é de admirar, então, que Keynes e outros esquerdistas proeminentes da época estivessem com raiva. Afinal, uma parte crucial da dinâmica da guerra é a convicção de que existem mocinhos e bandidos. Woolf deixou claro que, de fato, havia bandidos e bandidos. A vida sob os bandidos era ruim, e sob os piores seria ainda pior.

A atitude da esquerda não mudou muito desde 1938. O sexismo, é verdade, está afixado com boa vontade liberal no final daquela imponente litania esquerdista: imperialismo, colonialismo, capitalismo, racismo e, para as senhoras, sexismo. A análise original de Woolf e as análises feministas subsequentes são, vamos ser educados, ignoradas, não assimiladas, não atuadas sobre.

Os cidadãos da esquerda dominada pelos homens ainda estão conformados nas instituições que oprimem as mulheres, ainda aceitam a identidade fálica de dominação (masculinidade) que exige, para continuar a existir, submissão (feminilidade); ainda perpetuam ativamente as formas patriarcais de marido-esposa, família chefiada por um pai, igreja e estado; ainda exigem privilégio e confundem com liberdade. Na medida em que a esquerda está comprometida com as formas patriarcais, isto é, em grande medida, ela não pode deixar de perpetuar os valores aos quais pretende se opor. Na medida em que a esquerda não é consciente e conscienciosamente feminista, isto é, em grande medida, ela não pode deixar de perpetuar as mesmas formas de dominação e submissão que pretende, em outras áreas, se opor. Na medida em que os esquerdistas não reconhecem a dimensão real de suas alianças patriarcais, isto é, em grande medida, eles não podem deixar de perpetuar o patriarcado, esse sistema de propriedade masculina que é a forma parental do fascismo.

Como feministas, devemos ver a esquerda não feminista como um movimento de reforma. Devemos nos maravilhar com sua falência moral e com a pobreza de sua consciência revolucionária. A humanidade ainda é, para aquele movimento, literalmente o homem. O Trabalhador ainda é, ou cada vez mais, uma metáfora para o músculo fálico do herói, o centro da preocupação esquerdista com imagens de virilidade. As mulheres são ignoradas ou tratadas com condescendência. Gestos liberais de boa vontade são feitos, quando somos estridentes o suficiente ou quando estamos na moda, desde que não interfiramos na “revolução real”. Cada vez mais, entendemos que somos a verdadeira revolução.

2. Patriarcado e sexismo

Economia é o osso, política é a carne, observe em quem eles batem e quem eles comem, observe em quem eles se aliviam, observe quem eles possuem.
O resto é decoração.

Marge Piercy

[meu pesadelo] parece uma aldeia iluminada com sangue onde todos os pais estão chorando: meu filho é meu.

Adrienne Rich

Esposas, submetam-se a seus maridos, pois o marido é o cabeça da esposa, assim como Cristo é o cabeça da Igreja.

Efésios 5:23–24

Sexismo é uma palavra nova, que foi assimilada com notável facilidade no uso comum [EUA]. Destina-se a referir-se ao preconceito cultural, político e psicológico sistemático contra as mulheres. Denota diferenciação/inferioridade biológica, assim como racismo denota diferenciação/inferioridade racial. Foi cunhado para que pudéssemos nos referir à convicção geral cultural, política e psicológica de que as mulheres são inferiores aos homens, e que as qualidades das mulheres ou femininas (como uma cultura de supremacia masculina as define) são inferiores às qualidades dos homens, ou masculinas. Como em nossa cultura os homens homossexuais são associados as mulheres, ou seja, feminilidade, isto é, ao serem penetrados, eles assumem o estigma feminino, a palavra “sexismo” cedo passou a denotar preconceito contra homens homossexuais. Na verdade, a palavra é usada de forma tão promíscua que seu significado se tornou totalmente vago: na maioria das vezes denota preconceito contra uma pessoa com base em gênero ou orientação sexual, sem nenhuma referência intrínseca à supremacia masculina ou à inferioridade feminina. Como resultado, “Eu odeio todos os homens” ou “Eu odeio todas as bichas” ou “Mulheres? Eu acho que elas deveriam exercer o Pussy Power [poder da buceta]” são todos, de alguma forma, sexistas.

Isso confunde maravilhosamente as coisas, e podemos começar a entender por que a palavra “sexismo” é afixada sem dor na lista de nãos dos esquerdistas. Bem manipulada, a palavra perde o sentido porque não faz mais referência à realidade do poder. Qualquer um pode ser contra, e poucos são a favor. Alguém pode ser contra sem mudar sua identidade ou comportamento como opressor — o que é, claro, o que queremos dizer quando falamos depreciativamente sobre os liberais. Assim como os liberais são contra o racismo, mas se recusam a desistir do poder que deriva de sua própria supremacia branca, os esquerdistas são contra o sexismo, mas se recusam a desistir do poder que deriva de sua própria supremacia masculina. Como então separamos as feministas dos rapazes?

Os homens são poderosos e as mulheres são impotentes porque vivemos em um patriarcado. Pater significa dono, possuidor ou mestre. A unidade social básica do patriarcado é a família. A palavra “família” vem do osco [língua itálica] “famel” que significa servo, escravo ou posse. Pater familias significa “dono de escravos.” Pais e padres comuns recebem sua autoridade como paters.

“Patriarcado” é o nome do sistema político e cultural que oprime as mulheres. Ser pela libertação das mulheres é ser contra o patriarcado, nenhum compromisso menor é sério. Em um patriarcado, toda autoridade civil e religiosa (poder) pertence por direito de primogenitura aos homens. O patriarcado é um sistema de propriedade em que mulheres e crianças são propriedade. O patriarcado é o modelo autoritário original, o modelo totalitário molecular, e toda forma tirânica é derivada dele. Ser contra a tirania e pela liberdade é opor-se, resistir, recusar-se a obedecer às instituições patriarcais. A destruição do cenário político senhor-escravo, como quer que o descrevamos (capitalista-trabalhador, branco-negro, rico-pobre, etc), requer a destruição da fonte desse cenário patriarcal. A destruição das psicologias e comportamentos que chamamos de dominante (homem senhor) e submisso (escravo, mulher), ou agressor-vítima, exige a destruição da fonte desses conjuntos mentais e comportamentos — o patriarcado. Terminar para sempre a guerra dos poderosos contra os impotentes e acabar com as guerras menores de homens maus contra homens piores significa desmantelar a maquinaria do patriarcado.

Os liberais, que Deus os abençoe, são contra o sexismo e a favor de alguma reforma positiva. Eles querem que os homens maus parem de lutar contra homens piores aqui e ali; eles querem que os trabalhadores, principalmente homens, controlem os meios de produção. Os revolucionários querem destruir esse sistema de opressão, fonte de um milhão de tiranias, chamado patriarcado.

3. Patriarcado e Violência

Eu sou o centro de uma atrocidade.
Sylvia Plath

Estamos efetivamente nos destruindo pela violência disfarçada de amor.
RD Laing

Conversamos sobre a Liga das Nações e as perspectivas de paz e desarmamento. Nesse assunto, ele não era tanto militarista quanto marcial. A dificuldade para a qual ele não conseguia encontrar resposta era que, se a paz permanente fosse alcançada e os exércitos e marinhas deixassem de existir, não haveria saída para as qualidades viris que a luta desenvolveu, e o físico e o caráter humano se deteriorariam.
Da biografia de Anthony (Visconde Knebworth) pelo Conde de Lvtton

A violência está entrelaçada no tecido social porque é a substância da sexualidade como a conhecemos. Domínio e submissão, ele e ela. Agressão, conquista e brutalidade são as características masculinas definidoras. A guerra, acreditam as feministas, é uma função da identidade (fálica) masculina. O vocabulário da guerra — agressão, conquista, domínio — é o vocabulário da virilidade masculina “saudável”. Falamos da violação de um país e não é por acaso que, quando os soldados violam um país, violam também as suas mulheres. O genocídio do Viet Nam [2] foi caracterizado por tentativas massivas e repetidas de desfolhar a terra. A própria Mãe Natureza. A mensagem do atentado de Natal de Nixon usou uma linguagem altamente sexual e sexista. Sabemos que essas conexões existem, e qualquer um que esteja preocupado com a violência e com o fim dela como a substância da relação humana deve falar sobre isso.

É incrível para as feministas que a noção de violência como uma função da identidade sexual masculina não seja uma preocupação urgente e ardente para aqueles que são contra, dizem eles, a violência. Como podemos perguntar, pode-se ser contra a violência sem ser contra a violência comum e cotidiana que define a relação homem-mulher? Como alguém pode ser contra a guerra lá e celebrá-la aqui, em nossos corpos? A verdadeira oposição à violência exigiria atenção específica aos crimes de violência contra as mulheres. Violência domestica e agressão física geral de homens contra mulheres são endêmicos na Amerika [3] como em outros lugares. O espancamento da esposa, em particular, é um crime que permanece invisível, sancionado por leis que dão ao marido autoridade sobre a esposa. O estupro violento é comum nas ruas da cidade, uma epidemia; e também é comum nos chamados relacionamentos pessoais e privados entre homens e mulheres. Mulheres são estupradas, e mulheres são forçadas à prostituição, e mulheres são agredidas, e atos de violência contra mulheres em todos os lugares em todos os níveis são comuns, tão comuns que não são dignos de nota, tão comuns que são chamados de “normais” e romantizados como o amor.

Como é possível, perguntamos, agir contra a guerra sem agir contra a violência? E como é possível atuar contra a violência sem atuar contra a violência masculina contra a mulher? As feministas não pensam que isso seja possível e, no entanto, quando procuramos aqueles de esquerda que se opõem à violência, digamos, em nossas fileiras, não os encontramos.

4. Os meios de produção e o capital original

Sabemos que dois males são claramente anteriores ao capitalismo corporativo e posteriores às revoluções socialistas: o sexismo e o racismo — portanto, sabemos que uma revolução socialista dominada pelos homens em termos econômicos e até culturais, se ocorresse amanhã, não seria revolução, mas apenas outro golpe de estado entre os homens.
Robin Morgan

Garanto-lhe que não sou inimigo das mulheres. Sou muito favorável a seu emprego como operárias ou em outras atividades servis.
Um industrial para Emily Davis, que queria ajuda para financiar uma escola para mulheres

Em um mundo, os filhos de homens educados trabalham como funcionários públicos, juízes, soldados e são pagos por esse trabalho; em outro mundo, as filhas dos homens educados trabalham como esposas, mães, filhas — mas não são pagas por esse trabalho? O trabalho de uma mãe, de uma esposa, de uma filha não vale nada para a nação em dinheiro vivo?
Virgínia Woolf

As mulheres dizem, que vergonha. Dizem que você é domesticada, alimentada à força, como gansos no quintal do fazendeiro que os engorda. Elas dizem, você se pavoneia, você não tem outro cuidado senão desfrutar das coisas boas que seus mestres distribuem, solícitos pelo seu bem-estar desde que eles continuem a ganhar. Elas dizem que não há espetáculo mais angustiante do que o dos escravos que sentem prazer em seu estado servil. Elas dizem, você está longe de possuir o orgulho daquelas aves selvagens que se recusam a chocar seus ovos quando estão presas. Elas dizem, tome o exemplo das aves selvagens que, mesmo que acasalem com os machos para aliviar seu tédio, se recusam a se reproduzir enquanto não estiverem em liberdade.

Monique Wittig, As Guerrilheiras

Na esquerda, jovens brilhantes gostam de dizer que as mulheres serão liberadas quando os trabalhadores controlarem os meios de produção. É muito difícil para nós explicar, embora pareça perfeitamente óbvio, que o sexismo não é uma função do capitalismo. O capitalismo corporativo ou monopolista é a manifestação desta era, sofisticada e virtualmente incontrolável, da propriedade patriarcal. Os homens possuíam as mulheres, as mulheres eram o capital; os homens eram donos das mulheres e dos filhos que as mulheres produziam; os homens possuíam as mulheres como esposas, concubinas, escravas e tudo o que as mulheres produziam, os homens possuíam. Havia um homem e ele possuía várias mulheres e seus filhos e tudo o que eles produziam. Havia um homem e ele possuía famílias que trabalhavam em sua terra, e nessas famílias as mulheres eram propriedade primeiro do homem que era dono das famílias, depois do homem que chefiava sua família particular. Ele era o mestre, e mestre tornou-se seu título, então uma forma comum de tratamento. As mulheres eram capital; mais tarde, outras mercadorias, depois o dinheiro, substituíram as mulheres ocasionalmente, depois com mais frequência. Hoje existe capitalismo corporativo na América e capitalismo de estado na Rússia. Quando olhamos para o fracasso da revolução socialista na Rússia, vemos claramente a incapacidade dos patriarcas de abrir mão da propriedade das mulheres. Quando essa forma totalitária básica de propriedade sobrevive, onde quer que ela sobreviva, toda a gama heterogênea de comportamento totalitário sobrevive com ela.

Quando olhamos para a esquerda na Amerika aqui e agora, o que vemos causa terror em nossos corações: na maior parte há capitalismo — a propriedade privada das mulheres com uma reforma simbólica na divisão do trabalho; onde há socialismo, há a propriedade masculina coletiva das mulheres, geralmente sem nenhuma reforma simbólica na divisão do trabalho.

Estou convencida, enquanto pondero por que os esquerdistas estão tão absoluta e alegremente presos à noção de que a liberdade para todos é quando os trabalhadores controlarem os meios de produção, que a esquerda tem um apego quase patológico à noção mítica do trabalhador como uma figura de virilidade. Lá, pensam os intelectuais, está ele: dirigindo caminhões, colocando tijolos, construindo estradas, trabalhando em equipamentos pesados — um homem de verdade — O Trabalhador. Certamente não se pode negar que ele é o herói da esquerda, e se aprendemos alguma coisa é a manter distância dos heróis da esquerda.

Como alguém chega a tal conclusão? Começo com a proposição de que os meios de produção devem estar nas mãos do povo; que a liberdade, a dignidade e o trabalho não alienado são direitos de todas as pessoas. Eu olho para aqueles que articulam essas proposições. Mas de fato, ou com efeito, eles dizem: os meios de produção devem estar nas mãos dos homens; o trabalho deve ficar nas mãos dos homens; o dinheiro deve ficar nas mãos dos homens; a liberdade, a dignidade e o trabalho não alienado são direitos dos homens. Eles dizem: os homens têm esses direitos e se sobrar alguma coisa — trabalho, ou dinheiro, ou algum excesso de liberdade ou dignidade — vamos repartir entre as mulheres. Desnecessário dizer que não há nada sobrando, nunca.

Devemos considerar aqui as mulheres que trabalham, as mulheres que não trabalham e o “trabalho de mulher”. As mulheres que trabalham são subcontratadas, mal pagas, as primeiras a ser demitidas, excluídas dos sindicatos, não recebem promoções, aumentos ou treinamento, são discriminadas de todas as formas. Deixe os trabalhadores fazerem essas reclamações e a esquerda estará envolvida, preocupada, sim, indignada — piquetes serão organizados, livros serão escritos. O silêncio da esquerda sobre a situação miserável das mulheres trabalhadoras não é por acaso. Pelo contrário, é uma manifestação da aliança masculina para proteger o poder masculino e o privilégio masculino: por mais pobres que sejam os homens, as mulheres devem ser ainda mais pobres e, portanto, dependentes do favor masculino, em um estado de escravidão econômica e, portanto, sexual.

O mais espantoso é como os economistas de esquerda ignoram totalmente, como se não existisse, o chamado “trabalho de mulher”. A maioria das mulheres faz trabalho doméstico e não é remunerada por isso. A maioria das mulheres cuida dos filhos e não é paga por isso. As mulheres fazem trabalho escravo, sem recompensa, repetitivo, involuntário, não qualificado, sem valor, trabalho braçal que o homem mais pobre não faria. Onde estão os escritos de esquerda sobre como as mulheres são a força de trabalho mais violentamente explorada do planeta? Não apoiamos o capitalismo (a identidade da mulher não está investida no capitalismo), mas também devemos sobreviver sob ele. Para sobreviver, devemos ser pagas pelo trabalho que fazemos.

Isso, claro, não é suficiente. O trabalho doméstico e a criação de filhos não são trabalhos femininos — rejeitamos esse precioso direito de primogenitura junto com as fedidas rapsódias masculinas que o sentimentalizam. Esfregar o chão e lavar a merda dos bebês e das fraldas não são funções do gênero nem como destino nem como identificação, a menos que apenas as mulheres tenham mãos.

Por fim, a esquerda, seus economistas, historiadores e filósofos aparentemente ainda não perceberam que somos os meios de produção. Somos, em nossos corpos, o trabalhador e o meio de produção. Nunca houve trabalho tão alienado. Para nós, o controle sobre nossos corpos é o controle sobre nossas vidas. Somos privadas desse controle por um sistema de leis, costumes e hábitos que nos explora de forma tão cruel e absoluta que a exploração real do Trabalhador empalidece em comparação. Por que, devemos perguntar, a situação dele é crucial para vocês e a nossa invisível? Não pode ser porque o Trabalhador é mais pobre, ou mais explorado, do que, por exemplo, sua esposa que trabalha ou não em trabalho remunerado, e em ambos os casos faz trabalho doméstico e criação de filhos sem remuneração, e é ela mesma os meios de produção. Deve ser porque ele é um homem de verdade, esse herói da classe trabalhadora. Ela, como sempre, é apenas uma mulher de verdade. Claramente, os autoproclamados marxistas e comunistas de todas as ideologias permanecem capitalistas, patrões e exploradores desavergonhados até que desenvolvam consciência e compromisso feminista sério.

5. Feminismo e Foder

“O único amor verdadeiro que já senti foi por crianças e outras mulheres. Todo o resto era luxúria, pena, auto-ódio, pena, luxúria.”
Esta é a confissão de uma mulher.
Agora, olhe novamente para o rosto da Vênus de Botticelli, Kali, Judite de Flandres com seu assim chamado sorriso.

Adrienne Rich]

Todo ato de tornar-se consciente (diz aqui neste livro) é um ato não natural

Adrienne Rich

…Eu sou lésbica, certo? E eu não tenho que amá-los, não tenho que foder com eles, e com toda certeza não tenho que depender deles, e isso é liberdade…

Shirley, de Phyllis Chesler’s Women and Madness

O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para indicá-las era preciso apontar.

Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão

A opressão das mulheres, corpo e alma, ocorre todos os dias. É o tecido da existência diária, incessante, implacável, construído em lei, costume e hábito. As mulheres sobrevivem submetendo-se, aprendendo a mentalidade escrava e vangloriando-se dela. As mulheres avançam nesta sociedade sendo boas mulheres (ou seja, putas, novinhas, rabudas, etc.), assim como os negros avançam sendo bons negros.

Quando alguém para de jogar o jogo do escravo, o mundo desmorona. Nada resta. Nada do que se aprendeu antes funciona mais. Como é que alguém anda, fala, se veste, brinca, pensa, ama, de forma diferente? A cada minuto, como e o que se faz? O mundo se torna um lugar muito perigoso. Quando alguém para de jogar o jogo do escravo, deve começar a inventar cada minuto de sua vida. Não há formas que já existam para mostrar como, e não há comunidades liberadas onde pessoas exemplares levam vidas exemplares. Vive-se à beira de um mundo pessoal colapsado, em oposição direta a todo o mundo da realidade e do poder, e então o que se pode fazer senão inventar?

O ponto aqui é que não podemos nos dar ao luxo de abstrair nossos protestos ou resistências — devemos viver em nossos corpos e nossos corpos devem viver no patriarcado, sujeitos a violação, assédio e desprezo contínuos. Não há áreas neutras — áreas nas quais o “sexismo” não importa. Em particular, o sexo, o lar e o romance não são áreas neutras. Nada é mais político para uma feminista do que foder — nada é menos um ato de amor e mais um ato de posse, violação; nada é menos instrumento de êxtase e mais instrumento de opressão do que o pênis; nada é menos uma expressão de amor e mais uma expressão de domínio e controle do que a relação heterossexual convencional. Aqui a mentalidade de guerra visita nossos corpos e os valores fálicos de agressão, domínio e conquista são afirmados.

Para transformar o mundo, devemos transformar a própria substância de nossas sensibilidades eróticas e devemos fazê-lo tão consciente e conscienciosamente quanto fazemos qualquer ato que envolva toda a nossa vida. Existem dois modelos eróticos feministas emergentes: lesbianismo e androginia. O lesbianismo é uma celebração da feminilidade, o ato erótico central em uma cultura feminina emergente. A androginia tem a ver com a obliteração das distinções de gênero e papéis sexuais e, finalmente, do próprio gênero.

Ambos os modelos devem compelir aquelas que entendem que os sistemas de opressão são cânceres que crescem e se originam no modelo sexual distorcido, que é a noção patriarcal de normalidade, chamada de dominação e submissão. Dizemos que a opressão começa onde começa a vida, no ato da foda, e a revolução deve começar no mesmo lugar, ou não começou.

6. Conclusão

Há apenas uma escolha. Chame isso de liberdade.
Marge Piercy

Grace Paley estava me contando sobre sua viagem à Rússia e disse:

o antijudaísmo é a patologia da Rússia e de toda a Europa Ocidental, assim como a antinegritude é a patologia da América, e ser antimulher é a patologia do mundo.

A patologia de ser antimulher, ou de odiar a mulher, é a trama do mundo. Cure-a, e o mundo como o conhecemos — sua opressão cruel e sistematizada, o sofrimento de suas multidões miseráveis — deve entrar em colapso. Cure-a e transformaremos a vida humana e criaremos uma comunidade humana. Continue alimentando essa mesma patologia, chamando-a de amor e normalidade, e nossa história será no futuro o que foi no passado — Dachau, Hiroshima, Viet Nam; estupro, tortura sexual, mulheres acorrentadas.

N.T.G

1 — apenas aqui a autora usa a palavra “machismo” (com grafia latina) e não “sexism”, sexismo, como no resto do artigo.

2 — mantive a grafia original que a autora usa frequentemente em vários dos seus escritos.

3— mantive a grafia original em vez de “Vietnã” do português brasileiro por supor que a autora quis aproximar da grafia vietnamita “Việt Nam” em vez da inglesa “Vietnam”.

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