Porque devemos votar em candidatas de esquerda.

Mesmo com suas respostas evasivas sobre “o que é uma mulher”.

Sabrina Falcão
5 min readSep 19, 2022

“Todos sabemos o que é uma mulher, todos viemos de uma.” — Provérbio popular

“Metade do mundo é mulher, a outra metade são filhos de uma” — Provérbio popular

Ultimamente a esquerda anda fingindo (mas é apenas fingimento) que não sabe o que é uma mulher e está nos vendendo como um sentimento que os homens podem ter. Ainda assim, votar em conservadores (homens ou mulheres, indivíduos ou legendas) porque eles não usam a definição cuier de mulher é uma jogada perigosa, um blefe cuja aposta envolve mais precarização do bem estar social, a perda das raras exceções onde o aborto é permitido e o fortalecimento daqueles que querem proibi-lo em todos os casos.

Se tem uma coisa que a boa iniciativa de pedir a candidatas para definir o que é mulher nos mostrou é que se o parâmetro for esse, estamos fodid@s à direita e à esquerda. A resposta cuier é tão parecida com a resposta convencional que temos a impressão que ela poderia ser usada por sua mãe, tia, ou você mesma antes de acordar do transe e se familiarizar com uma definição materialista. A repetitiva abundancia de “Guerreira”, “Fortaleza”, “Potência” e a tentativa de fazer poesia em respostas de ambos os lados poderiam facilmente estar nos tradicionais cartões do dia das mães, exceto pela nova e onipresente “Diversas”. E isso não é por acaso. Como também não é por acaso que se os conservadores fossem sinceros diriam que a definição de mulher é “incubadora”, expressão que é prima irmã da “pessoa com útero”, usada por pessoas do outro lado do espectro político em substituição à palavra “mulher”. Ambas desumanizam as mulheres ao tratar partes e funções dos nossos corpos como uma definição de nós mesmas.

E isso é uma coisa que precisamos entender sobre as políticas de “identidade de gênero”, que ela é uma versão drag da conservadora divisão social entre os sexos. Tire a “fantasia” e o que temos é o velho e conhecido sexismo. Uma outra coisa é que ela avança independente do grupo que ocupa o governo, porque seu campo de influência abrange todas as frentes que o capitalismo toca. Isso, é claro, inclui o congresso, mas, em se tratando de um conceito tão estapafúrdio, o de que homens podem ser mulheres, antes de criar leis é preciso convencer ao menos parte da sociedade de que essa ficção é plausível. E para isso ela conta com o meio acadêmico, a classe médica, a industria farmacêutica, o judiciário, a mídia tradicional, as redes sociais, as grandes corporações, etc. É depois desse processo de legitimização social de tornar uma ideia fantasiosa aceitável que surge a “necessidade” da criação de leis.

No Brasil, por exemplo, ainda não existe uma legislação federal específica para homens que querem frequentar o banheiro feminino, no entanto diversos estabelecimentos já oferecem banheiros “inclusivos”, ou seja, unissex, para o público. Os interesses da agenda-T vão avançando por jurisprudência e por pressão de setores que influenciam a opinião pública, na forma de decisões judiciais, recomendações de entidades médicas, novelas no horário nobre, filmes, séries, livros e teses em “estudos de gênero”.

Por outro lado, a total criminalização do aborto precisa de um congresso conservador. Nenhum outro agente é necessário nesse ponto em que estamos. Não precisa de uma campanha corporativa para legitimar que mulheres não tem direito a soberania corporal, a maioria da população brasileira aceita e apoia que o estado imponha gravidez forçada às suas cidadãs. Essa ideia nos vem sendo vendida desde tempos imemoriais e constitui a própria base na qual nossa sociedade se estabeleceu. É por isso que não vemos campanhas de direito ao aborto em embalagens de salgadinho, mas temos um estatuto do nascituro pronto pra ser aprovado.

Embalagem de Doritos Rainbow foi pensada para mostrar o comprometimento da PepsiCo com a causa lgbT

Nos EUA, a terra do salgadinho e de onde saiu para colonizar o mundo a ideia misógina de “identidade de gênero”, bastou um mandato conservador para o direito ao aborto ir de vez pelo ralo. Atualmente, enquanto “clínicas de gênero” que castram crianças e adolescentes não param de abrir, clínicas que fornecem aborto legal não param de fechar. Em estados como o Texas ajudar uma mulher a fazer um aborto pode levar a prisão perpétua, seja um médico, um farmacêutico ou uma amiga. Em Nebrasca uma mulher está presa acusada de ajudar a filha adolescente a fazer um aborto depois que investigadores descobriram mensagens no Facebook (!) em que as duas discutiam o uso de medicamentos abortivos.

Já nossa vizinha Argentina aprovou uma lei que concede o direito ao aborto até 14 semanas para mulheres e “pessoas com outras identidades de gênero com capacidade de gestar”. Seis meses depois da criação dessa lei nenhuma mulher morreu por abortar. Apesar dos legisladores parecerem não saber que apenas mulheres tem capacidade de gestar, o resultado beneficiou concretamente nossa classe sexual. É esse tipo de resultado que nós mulheres alinhadas a valores humanistas deveríamos buscar nas eleições de outubro próximo: eleger candidatas e candidatos que se comprometem com políticas que beneficiam efetivamente a maioria das nossas membras.

No Brasil quem mais morre por aborto são mulheres negras, jovens, solteiras e com até o Ensino Fundamental. Aqui também, 63% dos lares chefiados por mulheres negras está abaixo da linha da pobreza e são mais afetados pela fome. Com o empobrecimento, a fome e a negligência do governo, os índices de mortalidade materna dobraram entre 2019 e 2021. Basta juntar as 3 informações anteriores para saber que mães estão morrendo mais. Então, embora não haja garantia de que a pauta do aborto sob demanda vá avançar num governo de esquerda, outros indicativos sociais — como sair do mapa da fome!!! — deveriam ser razão suficiente para votar nela. Políticas públicas como o Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família e programas de microcrédito que priorizaram a titularidade feminina e efetivamente transferiu dinheiro e algum patrimônio para mãos de mulheres pobres e racializadas também são boas razões.

O atual governo não foi capaz de parar o lobby tr4ns e o número de candidatos homens concorrendo em vagas de mulheres mostra isso exemplarmente. As filas nos “ambulatórios de gênero” pagos com recursos do SUS também. Há muitos outros exemplos. A agenda-T obedece a interesses transnacionais que seguirão avançando porque se sustentam na ideia milenar de que mulheres não são seres humanos completos. Para combater esse avanço o único caminho é conscientização e trabalho de base, não dos políticos, mas de cada uma de nós que já entendeu que a subordinação dos seres humanos do sexo feminino se dá em virtude da nossa pressuposta capacidade reprodutiva.

Nós, mulheres, podemos defenestrar o Jair e parte de sua turma logo no primeiro turno, votando no único candidato que tem chance de fazer isso. Podemos priorizar o voto em mulheres de esquerda no geral, em mulheres indígenas e negras em particular, podemos priorizar o voto em mulheres a favor do direito ao aborto. Acredito profundamente que esses são parâmetros melhores para usarmos nessas eleições do que a definição materialista do que é mulher. Com comida no estômago e políticas públicas emancipatórias fica menos difícil ser resistência aos covardes misóginos que tratam mulheres como incubadoras que menstruam.

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