Uma Breve História do Patriarcado

Sabrina Falcão
22 min readApr 29, 2022
Gerda Lerner

Este artigo foi originalmente uma palestra proferida em 2004, na Carolina do Norte, pela historiadora Gerda Lerner, que na época tinha 84 anos. Gerda descreve a criação (construção social) do patriarcado baseado na hierarquia e na escravidão. Ela descreve como esse sistema é antiquado e perigoso para mulheres e homens.

Estou fazendo algo muito difícil hoje, vou falar sobre 2.500 anos de história em 50 minutos. Então, vocês terão que acreditar que os fatos que estou citando são amplamente comprovados por exemplos, mas não posso dar os exemplos. Eles estão no livro e acho que durante a próxima semana teremos a chance de entrar em exemplos mais concretos. O que estou tentando lhes dizer também, é que estudar o antigo Oriente Próximo, os atuais Iraque, Irã e Arábia Saudita, entre os [rios] Eufrates e Tigre — que é onde a civilização ocidental começou — é muito interessante para um historiador porque as fontes são muito mais abundantes do que as nossas fontes para, digamos, a Europa do século XIII. E a razão é que aquelas pessoas escreveram em tábuas de argila e tábuas de argila não se destroem como o papel — e como o papiro — então temos dezenas de milhares de evidências para tudo o que vou dizer.

É uma área muito rica para pesquisa. Neste livro, eu estava interessada em descobrir se existe uma história possível do patriarcado. Se é possível fazer uma história. É uma construção histórica? E a razão, é claro, é que a história tradicional nos ensina que as mulheres são de alguma forma essencialmente diferentes dos homens e são projetadas para desempenhar funções diferentes. E quando questionamos isso, sempre nos dizem: “Bem, sempre foi assim”. E dependendo da afiliação religiosa — é dado por Deus ou dado pela Natureza.

Eu queria ver se isso poderia ser contestado com evidências históricas. E assim, estou começando com a primeira divisão dentro da sociedade humana que ocorreu assim que os seres humanos começaram a viver em grupos e que é, claro, a divisão entre homens e mulheres. As diferenças óbvias entre homens e mulheres estão aí; são reconhecidas pelos seres humanos e sempre foram incorporadas a uma divisão sexual do trabalho. Agora, eu só quero antecipar minha descoberta final. Ou seja, o que estou tentando provar a você é que o patriarcado é um sistema histórico. Foi criado por seres humanos. Tem um início histórico. E tem um fim. Isso pode ser novidade para vocês. *risadas da plateia.*

Estabelecido ao longo de um período de quase 2.500 anos, eu dato esse período entre aproximadamente 3.100 aC a 600 aC. Agora, 600 aC é o período em que todas as principais religiões monoteístas já haviam sido escritas e estabelecidas, em que a filosofia grega é desenvolvida, a ciência grega é desenvolvida, esse é o período em que, em outras palavras, o patriarcado já está firmemente estabelecido. Agora, a divisão sexual do trabalho já ocorria nas aldeias tribais neolíticas que surgiram naquela área. Temos algumas evidências sobre o tempo de vida das pessoas naquela época, e era uma vida muito, muito curta. Arredondando um pouco, para os homens era 35 anos e para as mulheres 30 anos.

Agora, se você lembrar, há 30 anos a idade em que as meninas atingiam a puberdade era mais tarde do que é agora. Então, mesmo que datemos [a puberdade] com 14 anos, uma mulher tinha 16 anos em que ela poderia ter filhos, certo? A taxa de mortalidade infantil era de cerca de 80% na época, então 20% das crianças sobreviveriam ao primeiro ano de vida, o que significava que uma mulher tinha que ter gestações praticamente todos os anos ou a cada ano e meio para que duas ou três crianças sobrevivessem até a idade adulta. Ok?

E, claro, o que isso significa em termos práticos, é que se aqueles grupos em que os arranjos sociais não funcionavam para a sobrevivência das crianças, esses são os grupos que desapareceram. Certo? Assim, a divisão sexual do trabalho tornou absolutamente essencial que os grupos desenvolvessem um sistema pelo qual as mulheres pudessem criar os filhos. Geralmente, quando nos contam sobre a subordinação das mulheres, e nos contam por que isso acontece, nos dizem que tem a ver com o fato de as mulheres “terem” filhos. Acho que isso não é — que “ter filhos” — NÃO é o problema. A questão principal é a “criação” da criança.

As crianças humanas precisam de muitos anos de cuidados antes que possam sobreviver — e em condições mais primitivas, mais anos de cuidados.

E assim, a amamentação prolongada e a maternidade efetiva são as questões-chave na sobrevivência das tribos. E, como resultado, a divisão essencial do trabalho que encontramos na maioria das primeiras sociedades é que as mulheres cuidavam da caça e da coleta ao redor da área [em que viviam], o que, de fato, fornecia até 70 ou 80% da nutrição do grupo, e os homens cuidavam da caça [longe do assentamento] no que depois se transformaria em guerra — defesa contra outras tribos.

Estas — ambas as funções necessárias para a sobrevivência do grupo — e a divisão sexual do trabalho, eram meios eficazes de assegurar a sobrevivência do grupo em condições muito duras e NÃO SIGNIFICAVAM DESIGUALDADE. E sabemos disso por muitas evidências de assentamentos primitivos onde sepulturas de homens e mulheres eram do mesmo tipo, e assim por diante. A próxima coisa que acontece é que pequenos grupos de tribos em assentamentos começam a invadir uns aos outros e precisaram encontrar uma maneira de parar de ter guerras constantemente.

O que se desenvolve é a troca de mulheres.

As mulheres são trocadas por duas razões: para fomentar as relações intertribais e também, mais adiante, para assegurar que as tribos tenham um suprimento eficiente de mulheres que possam criar filhos. Agora, essa troca de mulheres ocorre em todas as sociedades conhecidas e muitas vezes é marcada por uma mudança do que chamamos de matrilinearidade para patrilinearidade. A matrilinearidade é a forma pela qual a sociedade se organiza de modo que se conta a descendência pela mãe, e o casal mora no local da casa da mãe. Muitas vezes os maridos das filhas vinham de vez em quando como visitantes e nem moravam lá. A matrilinearidade era muito, muito difundida em todos os primeiros assentamentos e, no período que estou descrevendo, vemos uma mudança para a patrilinearidade — que também é patrilocalidade. A descendência começa a ser contada através do pai. A noiva, ou a esposa, sai da casa dos seus pais e vai para o local do pai [da futura prole].

Um exemplo do arranjo inicial que encontramos na Bíblia é a história de Jacó, que vai à casa de Labão para morar lá por sete anos para ficar com as filhas dele. Isso ainda é matrilocalidade. E então ele pega sua esposa e filhos, no momento em que a patrilocalidade é estabelecida, e os leva para a casa de seu próprio pai. Portanto, há um exemplo perfeito como prova de uma mudança. O que é muito interessante é que estudamos as evidências de que, embora esse processo ocorra em todos os lugares, ele nunca é revertido. Não temos registro de mudança de patrilinearidade para matrilinearidade, certo? Então você pode dizer que isso é uma espécie de desenvolvimento histórico.

Você pode perguntar, por que as mulheres foram trocadas e não os homens?

Ou por que as crianças não foram trocadas? Se você queria garantir a amizade de outra tribo e dava seus filhos — isso foi feito, por exemplo, na idade média entre as famílias governantes, muitas vezes os filhos dos governantes eram trocados para garantir a paz. Bem, a razão para isso é essencialmente que (isso é uma suposição, uma hipótese) não se poderia ter certeza trocando homens, que eles ficariam e que seriam pacíficos. E eles não sabiam controlar os homens, mas se você tivesse mulheres, você sabia que no momento em que elas engravidassem e tivessem filhos elas ficavam com seus filhos. E assim a habilidade das mulheres, a habilidade biológica e a habilidade das mulheres de nutrir os filhos as predispôs a serem escaladas para esse papel. Então, nesse sentido, há alguma base biológica. Mas isso NÃO significa que esse papel teve que ser escalado como um papel inferior. E esse é o meu ponto.

Em um certo momento, isso se torna um papel inferior. Outras explicações que foram dadas para a ascensão do patriarcado são que ele teve a ver com o fato de que os homens inventaram a pecuária — a partir da experiência com a caça. Eles teriam aprendido a domesticar animais, e porque aprenderam isso, diz a teoria, o homem, o caçador, adquiriu alguma riqueza em animais e então começou a controlar o mundo. Isso é a-histórico porque a pecuária foi inventada na região de que estamos falando por volta de 8000 aC. E temos provas, provas concretas através de escavações, de sociedades relativamente igualitárias na região que praticaram a criação de animais 2000–4000 anos depois. Então, esse não pode ser o motivo. Isto não é o que aconteceu.

Mas aconteceu que os homens aprenderam a domesticar os animais e que a divisão sexual do trabalho foi reforçada por isso, muito fortemente.

Agora, na época da qual estou falando, 3000 aC, havia cidades-estados sendo formadas nesta região, em Ur, em Lagash, em Kish, na Suméria, e temos registros muito bons desse período. E o que descobrimos quando essas cidades-estados são formadas é que elas já desenvolveram uma divisão de trabalho mais elaborada. Ou seja, havia pessoas que se especializavam em funções militares, pessoas que se especializavam em artes e ofícios, e pessoas que se especializavam em cuidar da comunidade, caçar e coletar.

O que encontramos se desenvolvendo nesses primeiros assentamentos é um novo papel para as mulheres da elite. Estou falando aqui sobre as esposas dos governantes. Nessas cidades-estados, você tem o templo que é o grande centro de atividade, e a razão para isso é que naquela região, você precisa ter sistemas de irrigação em grande escala para fazer agricultura. E esses sistemas de irrigação requerem um suprimento de mão de obra e são administrados pelo templo — pelos templos. E assim há uma elite do templo, e gradualmente você vê alguns indivíduos que começam a funcionar como governantes.

Esses governantes são — a maioria deles — usurpadores.

Essa é a fama deles — que eles venceram em alguma guerra contra a tribo vizinha e que o rei lhes deu terras e então agora eles são os homens do rei e para mostrar sua legitimidade, eles geralmente afirmam que também são parentes dA Deusa. Eu vou falar sobre isso mais tarde. Mas, um dos problemas que eles tinham é que eles estavam constantemente em guerra. E quando eles estavam fora sendo usurpadores, poderiam ser facilmente substituídos. E então, por conta dessa insegurança eles colocavam suas esposas como representantes. E esse é o papel da esposa como representante, ou chamada de esposa substituta.

E eu só quero apontar para você, sem poder dar todos os exemplos que eu poderia facilmente dar, que esse papel está conosco até hoje. Certo? É o papel da mulher da elite, como você tinha, digamos, a família Gandhi na Índia — se eles ficavam sem meninos, as mulheres assumiam. OK? Essas mulheres têm um poder tremendo. Elas conduziram guerras. Elas cobraram impostos. Compraram e venderam escravos. Elas tinham muito poder, mas também eram muito vulneráveis porque, nessa mesma época — temos documentos dessa época da cidade de Ur e de outras — os homens já haviam começado a manter haréns.

Para os reis, era um sinal de status e legitimidade que quanto maior seu harém, mais poderoso você era. E essas mulheres podiam ser substituídas a qualquer momento por uma segunda esposa ou concubina se não mais agradassem sexualmente a seus maridos. E há muitos casos em que temos cartas dessas mulheres deixadas de lado — essas mulheres poderosas.

Então o que você tem aqui é o protótipo de um papel patriarcal para mulheres da elite.

Elas abrem mão de sua liberdade sexual e em troca recebem muito poder — mas apenas enquanto servirem sexualmente e reprodutivamente ao marido. Se não tiverem meninos, por exemplo, se não derem à luz filhos, podem ser postas de lado. Pra fora. Do nada. E podem ser, há casos em que de fato foram aprisionadas, postas de lado. Então isso está conosco até hoje. Este papel de esposa da elite.

Agora, chegamos à grande mudança na Idade do Bronze. E é claro, novamente, há muitas, muitas coisas que mudam, e eu tenho que simplificar muito e sinto muito por isso. Mas a principal coisa notável sobre a Idade do Bronze é que, devido ao fato de agora você ter ferramentas e armas de bronze, a guerra se intensifica e se torna muito mais eficaz. E mais e mais pessoas são mortas na guerra, por um lado. Por outro lado, agora você tem ferramentas de bronze para lavrar o solo e arar, a agricultura entra. E é muito mais eficiente — e de repente há suprimento de comida suficiente para que essas pequenas comunidades possam alimentar outras pessoas que trazem de fora — o que antes era impossível.

Por isso, e porque agora há uma necessidade constante de mão de obra, eles desenvolvem um sistema de aquisição dessa mão de obra.

E a mão de obra que eles adquirem são escravos. Mas antes disso, só preciso dizer que toda essa revolução agrícola traz consigo uma especialização muito maior da economia. Traz consigo o desenvolvimento de realezas, de modo que, em vez de pequenas cidades-estados e pequenas tribos, você agora tem reinos consideráveis, certo? Isso traz uma rivalidade entre a elite burocrática do templo, que controla os sistemas de irrigação, e os reis. Ok? E isso tem um grande impacto também no que se desenvolve a seguir.

Então, por exemplo, naquela época havia um governante, Sargão de Akkad, e ele governava a Suméria, Assíria, Elam e o Vale do Eufrates. Isso em meados do segundo milênio. E estou mencionando-o porque ele teve uma filha chamada Enheduanna, que é a primeira poetisa conhecida na história do mundo. Ela foi uma grande poetisa, e sua obra está disponível até hoje. E ele a colocou como a Alta Sacerdotisa, esse era outro papel para as mulheres. Se você a tornasse Alta Sacerdotisa, ela poderia penetrar no poder da elite do templo. E assim as mulheres da elite foram usadas como peões. Claro, os homens também. Os homens também não tinham livre escolha.

Agora, neste mesmo período, os guerreiros eram recompensados, ou seja, o rei usurpador, para consolidar seu poder, dava-lhes terras e mulheres conquistadas. Antes disso, sempre que havia guerra, e temos descrições muito precisas, eles descreviam como empilhavam os cadáveres e matavam todo mundo. Pilhas e pilhas de cadáveres: homens, mulheres e crianças eram mortos.

Mas depois da revolução agrícola, chegamos ao desenvolvimento do que chamo de invenção da escravidão. Isso é MUITO crucial. E o ponto aqui é que, porque os homens já aprenderam que se você troca mulheres e as estupra, ou se casa com elas e elas têm filhos, elas permanecerão na família do conquistador. Porque eles aprenderam isso, eles poderiam transferir isso para o inimigo conquistado. E o que é muito interessante é que em todas as sociedades do mundo que desenvolveram a escravidão, OS PRIMEIROS ESCRAVOS FORAM MULHERES E CRIANÇAS. E o que é realmente interessante, quando comecei a pesquisar sobre isso — achei quase impossível de acreditar — olhei dezenas e dezenas de fontes sobre a origem da escravidão, e todas tinham essa frase. E ninguém, NINGUÉM perguntou POR QUE ou QUAL é o SIGNIFICADO disso! É tudo que eu fiz. Eu perguntei por que e qual o significado? Ok?

Portanto, temos o registro de que por várias centenas de anos nesta área, enquanto escravizavam mulheres e crianças, não escravizavam os homens conquistados.

Eles os matavam ou os mutilavam. Eles cortavam seus tendões de Aquiles, eles os cegavam, eles zombavam deles e os marcavam. Eles não sabiam o que fazer, porque se um homem estivesse lutando com você com um porrete de bronze, certo? Você o venceu, e agora o trouxe para sua casa, colocou uma ferramenta na mão dele que era uma vara com uma enxada de bronze e disse: “Agora trabalhe para mim de graça”, ele poderia muito bem usá-la à noite como uma arma. E eles não sabiam o que fazer então.

Então você tinha que inventar uma maneira de tornar as pessoas escravizadas. Isso NÃO foi uma coisa natural, ok? E os homens aprenderam que você poderia fazer isso tornando o escravo um ser humano MARCADO que fosse rebaixado para que não fosse considerado, ele ou ela não fosse considerado um ser humano. Você o transforma em um “Outro”. E isso foi feito de várias maneiras. Muitas vezes as pessoas conquistadas realmente pareciam diferentes, de raça muito diferente — então o racismo começa. O racismo é uma das bases sobre as quais a escravidão é construída.

Mas mesmo que fosse um vizinho que se parecesse exatamente com sua própria tribo — eles cortavam o cabelo de maneira diferente, ou marcavam as orelhas, ou cortavam o nariz. Eles fizeram coisas muito brutais. O objetivo era marcá-los como “diferentes”. E então, construir uma ideia de que por serem diferentes eram inferiores. Que não eram completamente humanos. E uma vez que tivesse feito isso eles descobriram que você poderia usar a “diferença” e transformá-la em “dominância”. E,

ESSE É O PRINCÍPIO MORAL CHAVE DO PATRIARCADO.

E não consigo expressar o quanto é importante entender que a chave do patriarcado combina todas as descriminações em uma: você é diferente se for mulher, você é diferente se for de uma raça diferente, você é diferente se for de uma etnia diferente, você é diferente, depois, se você é de uma religião diferente e, finalmente, VOCÊ É DIFERENTE SE DISSERMOS QUE VOCÊ É.

Você sabe, nós criamos. Mães que dependem da assistência social? De repente, elas são diferentes? Elas não são nossas vizinhas? Elas não são exatamente como nós, só que são pobres? Não, veja bem. ESTA é a essência do princípio moral sobre o qual o patriarcado é construído. E assim, o entrelaçamento das formas de discriminação que estão envolvidas na escravidão e no sexismo estão tão conectados desde o início que você não pode separá-los, e o erro que temos cometido nos últimos 40 anos é que cada um está lutando contra sua própria coisa. Você não pode abolir isso dessa maneira. Desde o início está interligado, certo? E acho que essa é a importância dessa pesquisa.

O que isso também significa é que uma vez que a escravidão é inventada, a classe é formada de uma nova maneira.

Em uma frase eu diria que a classe é formada de maneira “generificada”. Ou seja, a classe nunca é a mesma para homens e mulheres. Nos povos escravizados, os homens, as mulheres e as crianças são usados como mão de obra explorada. Isso é — eles compartilham isso. Mas para as mulheres, a escravidão desde o início significa serviços sexuais e reprodutivos para os homens conquistadores. E não significa o mesmo para os homens. Em alguns períodos, há exemplos em que os homens são usados dessa maneira — no Império Romano e assim por diante. Mas essas são as exceções. E esse é o segundo princípio. Pois a subordinação e opressão da mulher sempre envolve o controle de suas funções sexuais e reprodutivas por homens ou instituições dominadas por homens. E isso não mudou em 3.000 anos. Certo?

Agora, isso significa também que classe — se classe é definida como o acesso aos recursos, ou o acesso ao que os marxistas costumam chamar de “meios de produção” — mas eu prefiro “recursos”, pois existem todos os tipos de recursos, então os homens do grupo dominante têm acesso direto aos recursos. Mas as mulheres só têm acesso aos recursos POR MEIO dos homens de quem dependem, que são os homens de sua família de origem ou os homens com quem se casam. E esta é uma diferença muito, muito GRANDE. Portanto, a classe NÃO é a mesma para homens e mulheres e a escravidão NÃO é a mesma para homens e mulheres. Agora, daqui eu vou para um — sinto que estou em uma pista de corrida — daqui eu vou para um período no final do segundo milênio e principalmente no primeiro milênio aC, quando já temos reinos e estados e os estados arcaicos são formados.

Daquela época, temos os grandes códigos legais disponíveis e quase tudo o que estou dizendo aqui é baseado no estudo dos quatro principais códigos de leis.

Principalmente o código de Hamurabi, que foi escrito por volta de 752 aC, a lei hitita e assíria que foi criada e escrita entre os séculos 15 a 11 aC e o hebraico, me baseando principalmente no Gênesis, que foi completamente escrito no século VII aC. Então, vou dar uma rápida visão geral de como a partir de agora, depois que os seres humanos inventaram uma maneira de transformar a diferença em domínio e organizar as sociedades de acordo com isso, ainda não significava que eles poderiam se safar de muitos excessos ou com muitos direitos. Isso levou muito tempo para se desenvolver. Não foi uma queda repentina. Foi algo que se desenvolveu ao longo de mil anos neste caso.

Primeiramente, nos códigos de leis, o que vemos é que antes delas serem aprovadas, o parentesco era a maneira pela qual a lei funcionava. Em outras palavras, se um crime fosse cometido, o chefe do grupo de parentesco — ou os homens do grupo de parentesco — se encarregaria de resolvê-lo. Geralmente com algum tipo de banho de sangue, vocês sabem, olho por olho, ou algo assim. Aos poucos, isso muda.

As leis são escritas, elas são escritas e o rei de repente começa a intervir.

Então, por exemplo, o adultério. O adultério é um crime que só as mulheres podem cometer nestas sociedades. Não há adultério para os homens, eles podem fazer sexo por aí o quanto quiserem. O adultério de mulheres geralmente é punido com a morte. Uma morte muito brutal. Mas vejamos a diferença. A princípio, os homens da família matariam sua irmã, filha, ou qualquer outra, para vingar uma violação da lei que desonrava a família. Agora, nesses códigos de lei, está escrito exatamente o que deve acontecer, que eles têm que ir ao tribunal e o tribunal impõe a punição. Assim, o Estado assume a aplicação dos arranjos patriarcais do casamento.

Agora, esses arranjos de casamento variam de acordo com a classe. São sempre considerados “contratos” entre dois homens chefes de família. Ninguém tem escolha no casamento. Ok? Para o grupo da classe alta, o pai da noiva recebia o “preço da noiva” do pai do noivo. Esse pagamento [dinheiro, propriedade, ou outra riqueza] torna-se propriedade do marido, que tem todos os direitos sobre ele. No entanto, ele tem uma grande restrição. Ele não pode vender ou usar para si mesmo porque é obrigado a manter esse patrimônio em caso de sua morte. Esse era um suporte para a viúva dele, entendem? Então o preço da noiva é uma forma pela qual as famílias asseguram um interesse comum para marido e mulher no casamento, um interesse financeiro, e dão algum tipo de proteção à viúva. Mas o que acontece quando a viúva morre? Esse dinheiro, ela não pode dispor dele. Vai para os filhos dela.

Então, o que temos aqui é o primeiro desenvolvimento de algo que veremos ao longo do tempo histórico, que é: a propriedade passa de homem para homem, mas passa ATRAVÉS das mulheres.

Esse é o segundo princípio do patriarcado. Então, se você quer saber qual é realmente o status da mulher, não adianta apenas olhar para o que uma mulher faz — você tem que olhar para as relações de propriedade. E você tem que olhar para as mulheres viúvas. Essa é uma maneira crucial de descobrir o status real das mulheres em uma sociedade.

Agora, a classe média das antigas sociedades do Oriente Próximo geralmente não tinham tanta propriedade para poder pagar um preço de noiva para seus filhos, então o que eles fazem é tentar obter um casamento para a filha e o preço de noiva da filha é usado para pagar o casamento do filho. Então, novamente, a propriedade passa pelas mulheres, mas é usada pelos homens da família.

A classe baixa, as pessoas empobrecidas… Em primeiro lugar eles têm uma brecha que existe no patriarcado, que é se eles têm uma filha muito bonita, talvez possam casá-la com alguém da classe alta. É possível as mulheres mudarem seu status de classe pelo casamento, mas geralmente os arranjos são todos tais que a propriedade do grupo, a classe como um todo, permanece na classe. Eles encorajam as pessoas a se casarem dentro de sua classe. Então os muito pobres, o que eles podem fazer é vender uma filha para a prostituição ou escravidão e usar o dinheiro para comprar uma noiva para o filho. Ou, para sair das dívidas, à medida que a escravidão por dívida se desenvolve como instituição. Existem muitas leis a respeito. Se um homem está endividado, ele pode pegar sua esposa e filhos e torná-los escravos por dívida, e com o dinheiro que ele pode obter deles, ele pode pagar sua dívida.

Assim, a propriedade de mulheres e crianças é legitimada como parte da instituição legal do estado patriarcal.

E a propósito, é claro que vocês podem entender isso sempre que abrem os jornais e leem sobre algumas mulheres nas sociedades afegãs cujos pais ou cujos irmãos as matam porque foram estupradas ou desonradas — quer dizer, esse é o sistema antigo ainda funcionando bem. É incrível, tem uma longevidade incrível. A virgindade das noivas e a castidade das esposas tornam-se uma mercadoria para a família. E é assim que o patriarcado começa. Certo? O estupro é considerado crime do estuprador contra o pai da mulher estuprada ou contra o marido. E muitas vezes a punição é que a mulher estuprada se case — tenha que se casar — com o estuprador.

Agora, vocês podem facilmente confundir isso e pensar que significa que as mulheres se tornaram escravizadas — elas NÃO se tornaram escravizadas. Essas mesmas mulheres de classe média e alta que descrevi para vocês nesses códigos de leis, temos uma imagem de uma sociedade na qual essas mulheres são muito ativas comercialmente. Elas têm muitas ocupações. Elas têm um status econômico muito mais alto do que as mulheres americanas do século 18, por exemplo. Elas podem comprar e vender escravos. Elas podem oprimir outras pessoas. Elas podem gerenciar negócios — e o fazem. Mas ainda assim, tudo depende de seu arranjo conjugal e sexual.

Essencialmente, para estabelecer o patriarcado como um sistema funcional, os homens têm que garantir, e o Estado garante, que a sexualidade e o poder reprodutivo das mulheres são controlados por homens e instituições dominadas por homens.

É claro que poderíamos passar muito tempo, e talvez na próxima semana o façamos, discutindo como isso ainda hoje se desenrola. E isso, claro, informa as atitudes feministas sobre questões como aborto e estupro. Porque o que está envolvido é um princípio muito antigo e muito importante que é o pilar desse sistema opressor. Agora, voltando rapidamente. *risadas* Continuando, em todo esse período em que todas essas instituições se desenvolveram, as mulheres ainda têm poder. E um dos grandes poderes que as mulheres ainda têm nas antigas sociedades do Oriente Próximo é que elas servem aos deuses. Elas servem como sacerdotisas, elas servem no templo, elas governam os templos, e de uma maneira importante — vocês sabem, na cultura ética nós entendemos a religião como uma construção humana — a construção humana da religião sempre foi baseada em quem cria a vida, quem controla a morte e quem traz o pecado ao mundo.

E no período sobre o qual estou falando, todas essas sociedades têm um panteão de deuses e deusas que agem muito como seres humanos, que têm todas as falhas dos seres humanos. Em um dos épicos mais antigos, o épico de Gilgamesh, ele começa com os deuses trazendo a julgamento Gilgamesh, que é meio deus e meio humano, porque ele andava por aí estuprando mulheres e criando perturbação. Então vocês entendem o que quero dizer. Os deuses e deusas têm qualidades humanas e são igualmente desagradáveis entre si. Eles conduzem a guerra, eles conduzem intrigas. Então, se tinha algo errado com uma pessoa, e ela desejasse ajuda, era mais provável que fosse ao templo de uma deusa, onde a sacerdotisa estava encarregada, do que ao templo de um deus. Isso tudo muda. E muda na última parte do primeiro milênio, mas muda em lugares diferentes em épocas diferentes, dependendo da condição. E sempre muda em apenas uma direção.

Os deuses e deusas são substituídos por um poderoso deus masculino.

É o deus da tempestade, o deus do vento. É muito interessante. Esse é o deus mais poderoso. E de repente, ou gradualmente, a deusa é destronada e de repente se torna sua consorte ou sua esposa. Isso, é claro, é a preliminar para, finalmente, o desenvolvimento do monoteísmo, certo? E à medida que esse desenvolvimento ocorre, cada vez mais, você encontra as histórias da criação mudando, de modo que não é mais a deusa mãe que cria a vida, e eu não tive a chance de falar sobre o culto da deusa mãe no Neolítico que é muito difundido. E, essas deusas-mãe sempre foram também responsáveis pela morte.

Assim, a deusa mãe, que estava encarregada da vida e da morte, agora é a esposa do deus da tempestade. E de repente você aprende que é o deus da tempestade que dá vida. E a próxima coisa que lhe será contada na Bíblia hebraica é que é Deus quem cria a vida. Deus abre o ventre de Sara. Deus decide quem é fértil e não. Não é mais a Deusa, certo? Assim, o destronamento da Deusa acontece em todos os lugares, e se você olhar para isso historicamente, como eu fiz, acontece quando um determinado estado se torna IMPERIALISTA. É muito interessante. Não ocorre em nenhum outro momento. Quando o estado começa a reivindicar que tem o direito de conquistar seus vizinhos e governar — como disse um governante: “Eu governo os quatro cantos da Terra. Deus me deu esse direito.” Aqui estamos.

Para encerrar esta triste história.

*risadas da platéia* No momento em que o monoteísmo se desenvolve, no momento em que temos impérios nesta região, que temos estados militares poderosos que controlam a vida de seus cidadãos, vemos o desenvolvimento da ciência, a ciência grega, a filosofia grega e mulheres a essa altura já foram bastante afastados do contato com o Divino. Esse também é um processo que leva muitas centenas de anos, mas ocorre sempre na mesma direção. Assim, os fundadores da filosofia grega, especialmente Aristóteles, são muito explícitos sobre sua visão das mulheres: as mulheres são seres humanos aleijados. Elas são incompletas. Elas não são bem humanas. E, portanto, você pode compará-las a escravos. E a comparação está feita.

Então, o que estamos vendo é que — agora, se falarmos sobre dois tipos de coisas que dão poder — uma é o poder real — que é o militarismo e a distribuição de terras. Essa é uma fonte de poder para os seres humanos. Mas há outra fonte de poder. E é o sistema de símbolos. O que você coloca na cabeça das pessoas. Como você explica o mundo e a relação com o universo e o significado da vida. Ok? Assim, no momento em que os homens, e FOI OS HOMENS NESSE CASO, criaram o primeiro sistema de símbolos significativo da civilização ocidental, a subordinação das mulheres foi realizada “de fato” — em todos os lugares que vivem. E por isso não é questionado. Não é um problema. Eles discutem a escravidão.

Eles discutem se é certo escravizar pessoas, mas NÃO discutem se as mulheres são seres humanos IGUAIS.

E assim, por causa dessa antiguidade, naquela época, quando os próprios valores da civilização ocidental são criados, os homens que criam essa construção mental assumem a subordinação das mulheres como “naturais” ou “dadas por Deus”. Eles assumem como verdade que Deus não fala com as mulheres. Que um deus “masculino” cria a vida e que o “pecado” foi trazido ao mundo pelas mulheres. Bem, quando você tiver essa construção mental firmemente estabelecida e homens e mulheres acreditarem nela e a ensinarem a seus filhos, ninguém poderá questionar o patriarcado.

Agora acrescentemos, e infelizmente não tenho tempo de falar sobre isso para vocês, mais 2.000 anos de privação sistemática da educação das mulheres. Ok? Sistematicamente e em TODOS os lugares do mundo. Ok? E então você pergunta, por que as mulheres não estão em melhor situação? Por que elas não começaram sua luta por direitos mais cedo?

Então, em conclusão, eu acredito que o patriarcado foi estabelecido por homens e mulheres. E quando foi estabelecido pela primeira vez, serviu a um propósito. Eu chamo o que as mulheres fizeram de barganha patriarcal. E a barganha foi: eu abro mão da minha liberdade sexual, eu desisto da minha liberdade reprodutiva, e em troca um homem ou o estado protegerá a mim e meus filhos da guerra e alocará recursos para mim.

Certo? Essa foi a barganha. Então já foi um bom negócio NO NEOLÍTICO. *risadas da plateia* Não estamos mais vivendo no Neolítico. E o que temos é um sistema de ideias baseado em um arranjo perfeitamente funcional PARA O NEOLÍTICO. E que é TOTALMENTE disfuncional agora, Ok?

MULHERES E CRIANÇAS PERECEM NAS GUERRAS MODERNAS EM MAIOR NUMERO QUE OS HOMENS, certo? ASSIM — A PARTE DA PROTEÇÃO ESTÁ FORA DE COGITAÇÃO. Podemos argumentar até que ponto os homens fornecem recursos para as mulheres. ISSO É ARGUMENTÁVEL.

Meu ponto é que, a continuada existência do patriarcado, uma vez que é baseado na hierarquia, militarismo, escravização e a constante oposição de um grupo em benefício de outro, põe em perigo não apenas mulheres e crianças, mas o mundo. É DISFUNCIONAL. ESTÁ DESATUALIZADO. E PODE SER ABOLIDO.”

--

--